Diariamente, surgem nos meios de comunicação notícias sobre conflitos internacionais. Árabes contra israelenses, insurgências de minorias étnicas na China, Rússia, África. Com o fim das tensões entre capitalistas e socialistas, acreditava-se em um mundo mais pacífico. Mas não é isso que se vê. José Saramago, escritor, crítico, comunista, combatente, intelectual, Nobel (são muitos os qualitativos que se enquadram em seu perfil) escreveu um artigo que compreende exatamente essa realidade atual. Confira e aproveite a leitura!
Sobre a guerra, a paz e a cultura
“Todos sabemos, quer por experiência directa quer por informação do que em terra alheia se passa, como se fazem mobilizações para a guerra. Após a criação prévia, ou oportuna exacerbação, do indispensável foco de conflito, começa a decorrer o processo mobilizador das consciências, invariavelmente entre apelos ao patriotismo elementar, invocações de autênticas ou supostas glórias pretéritas, desfiles cívicos e militares, parangonas de jornais, hinos, discursos, imagens multiplicadas, sons atroadores, e, enfim, com a frieza irrecusável das fórmulas burocráticas, o edital afixado nos lugares públicos e a convocatória que se recebe em casa. Ainda mal foi disparado o primeiro tiro, e esta guerra, conforme os casos, já é santa, já é justa, já é necessária, quando não acumula todos esses atributos e outros que igualmente a justifiquem. Ao longo dos séculos, a arte de mobilizar para a guerra aperfeiçoou métodos e técnicas, com vista a equilibrar, reciprocamente, as potências, a autoridade compulsiva dos governos e a subtileza das múltiplas determinantes que condicionam os comportamentos colectivos e individuais. A arte de persuadir e convencer tem na mobilização bélica uma das suas mais acabadas expressões.
E a paz? A paz, em geral, não anda acompanhada de adjectivos. Mas ninguém ignora que muitas vezes a dizem paz armada, o que, obviamente, significa, não já paz, mas deliberada disposição para a guerra. E quando se tornou incómoda para as sofreguidões e impaciências dos que a detestam, então ainda pode ser chamada doutra maneira: é a paz podre, trágico paradoxo linguístico que pretende apresentar como imobilidade, morte e putrefacção aquela mesma paz que é, verdadeiramente, a condição da vida.
Estas duas simples verificações acabam por conduzir-nos ao plano da cultura, aqui entendida como situação do homem e sua relação com o mundo e com a sociedade nacional a que pertença. Culturalmente, temos de reconhecê-lo, os homens são facilmente mobilizáveis para a guerra e dificilmente mobilizáveis para a paz. Eis uma evidência que deveria constituir, a Humanidade sempre considerou, ou foi levada a considerar, a guerra como o mais eficaz meio de resolução dos conflitos, e sempre os governantes se serviram dos breves intervalos de paz para a preparação da guerra que há-de vir. Mas foi sempre em nome duma paz futura que se declaram todas as guerras. É sempre para que amanhã vivam pacificamente os filhos que hoje são sacrificados os pais.
Isto se diz, isto se faz acreditar e acredita, porque se sabe que o homem, embora historicamente educado para a guerra, transporta no seu espírito um perene, ainda que confuso, anseio de paz. O homem intui, derradeiramente, que o que lhe confere humanidade não é o progresso ou o desenvolvimento científico e técnico, mas sim o desejo de paz. Daí que a paz seja usada como meio de chantagem moral por aqueles que têm interesse na guerra: ninguém ousaria confessar que faz a guerra pela guerra, afirma-se, sim, que se faz a guerra pela paz. Por isso, e só por isso, todos os dias e em todas as partes do mundo continua a ser possível partirem homens para a guerra, continua a ser possível ir e lá destruí-los em suas próprias casas.
Falei de cultura, e talvez pareça que o fiz fora de propósito. Serei porventura mais claro falando de revolução cultural. Revolução cultural é uma expressão fatigada, consumida de contradições, perdida em projectos que a desnaturam, desgastada em aventuras cuja indiscutível generosidade veio a servir interesses que radicalmente lhe eram contrários. Sem dúvida não foram vãs essas agitações, abriram-se espaços, alargaram-se entendimentos. Mas é tempo de reconhecer e proclamar que a única revolução cultural realmente merecedora de tal nome será a revolução da paz, aquela que transformará o homem treinado para a guerra em homem educado para a paz e a quem a paz educou. Essa, sim, será a grande revolução mental, portanto, cultural, da Humanidade. Este será, de facto, e em tudo, o homem novo.
Por de mais temos visto que abundam os governos que não defendem a paz. Cabe portanto aos governados prepará-la. É talvez uma utopia que fará sorrir os cépticos e os que, servindo os senhores da guerra, não pensam em mais que servirem-se a si próprios. São esses que, chegada a hora, nos mobilizam para a guerra e contra a paz, para a guerra e contra a cultura, para a guerra e contra a cooperação dos povos. Que faremos, então? Mobilizemo-nos todos para a luta pela paz.
É certo que há uma terrível desigualdade entre as forças materiais que proclamam a necessidade da guerra e as forças morais que defendem o direito à paz, mas é também certo que nada, em toda a História, pôde vencer a vontade dos homens, excepto a vontade doutros homens. Não é com forças de transcendência que temos de confrontar-nos, mas sim, e apenas, com outros homens. Trata-se, então, de tornar mais forte a vontade de paz que a vontade de guerra. Trata-se de entrar em mobilização geral para a luta pela paz: é a vida da Humanidade que estaremos defendendo, esta de hoje, e a de amanhã, que talvez se perca se não começarmos a defendê-la agora mesmo. A Humanidade não é uma abstracção retórica, é carne sofredora e espírito ansioso, e é também uma esperança inesgotável. A paz é possível. Mobilizemo-nos para ela.”
by Michelle